Turquia

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domingo, 7 de setembro de 2014

Conhecimento, Dor e Ancestralidade


Suzanne McClelland (1958- )





“A comunidade dos mortos é nossa primeira companhia”, diria o analista pós-junguiano James Hillman. Ou o nosso primeiro pressuposto, digo eu aqui. Não só os mortos, mas a soma dos equívocos e esquecimentos das gerações que nos precederam, incluindo nossas famílias e ancestrais mais imediatos. Além da cultura, naturalmente. Não é à toa que o intergeracional é uma preocupação religiosa antiga [vide os japoneses, em seus rituais shintoístas e budistas, ou na mescla de ambos, shinto-budistas], e uma questão psicanalítica menos antiga [Nicolas Abraham e Maria Torok sendo seus representantes mais óbvios, no rastro de Sandor Ferenczi, todos eles húngaros].

Mas vejamos: aquele que se depara com o acúmulo de esquecidos e os aponta, atravessa, necessariamente, uma fronteira de dor. Há dor no viver-apontar o esquecido. Isso não pode ser subestimado. Isso está para além dos segredos familiares, que algum membro descendente dessa montanha de silêncio queira evocar-apontar: isso inclui os silêncios ancestrais e culturais, de ambientes como escola, igreja, hospitais, orfanatos, quartéis, repartições. Isso inclui vasculhar todo e qualquer escaninho emperrado por falta de uso e ousadia. Já há um quantum de tensão [dor-e-medo] no simples formular da pergunta. Há a segunda travessia de tensão em “suportar fazer a pergunta sem cúmplices” [num primeiro momento] ou, um corolário disso, catalisando antipatizantes. Há o tempo maior para a decantação de tudo e para a possibilidade de acolher, com um sorriso de simpatia, os próprios ambientes negadores do segredo, sobretudo a família, que acusa quem os desvela de “inventar moda”, sendo a própria expressão sintomática da longevidade da herança.

Conhecer é sofrer para, depois, poder se acalmar. Conhecer é vencer a força-de-inércia da herança ancestral que, como o lodo de um rio que não se limpa há muito tempo [ou que nunca se limpou] tenta emperrar toda inquirição mais funda, todo o maquinário da escavação e questionamento mais incisivos. Porque questionamento “de fato” e “de mérito”, não apenas retórica de confirmação do já-dito, do já-preservado, daquilo que a Ancestralidade toma por “relíquia”. Isso é fácil como imaginar que tudo acaba com a morte [oh, como seria banal e simples todo o problema se resumir no ideograma “finitude”], e é chover no molhado.








Marcelo Novaes

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