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Suzanne McClelland (1958- ) |
“A comunidade dos mortos é nossa primeira companhia”, diria o
analista pós-junguiano James Hillman. Ou o nosso primeiro pressuposto, digo eu
aqui. Não só os mortos, mas a soma dos equívocos e esquecimentos das gerações
que nos precederam, incluindo nossas famílias e ancestrais mais imediatos. Além
da cultura, naturalmente. Não é à toa que o intergeracional é uma preocupação
religiosa antiga [vide os japoneses, em seus rituais shintoístas e budistas, ou
na mescla de ambos, shinto-budistas], e uma questão psicanalítica menos antiga
[Nicolas Abraham e Maria Torok sendo seus representantes mais óbvios, no rastro
de Sandor Ferenczi, todos eles húngaros].
Mas vejamos: aquele que se depara com o acúmulo de
esquecidos e os aponta, atravessa, necessariamente, uma fronteira de dor. Há
dor no viver-apontar o esquecido. Isso não pode ser subestimado. Isso está para
além dos segredos familiares, que algum membro descendente dessa montanha de
silêncio queira evocar-apontar: isso inclui os silêncios ancestrais e culturais,
de ambientes como escola, igreja, hospitais, orfanatos, quartéis, repartições.
Isso inclui vasculhar todo e qualquer escaninho emperrado por falta de uso e
ousadia. Já há um quantum de tensão [dor-e-medo] no simples formular da
pergunta. Há a segunda travessia de tensão em “suportar fazer a pergunta sem
cúmplices” [num primeiro momento] ou, um corolário disso, catalisando
antipatizantes. Há o tempo maior para a decantação de tudo e para a
possibilidade de acolher, com um sorriso de simpatia, os próprios ambientes
negadores do segredo, sobretudo a família, que acusa quem os desvela de “inventar
moda”, sendo a própria expressão sintomática da longevidade da herança.
Conhecer é sofrer para, depois, poder se acalmar. Conhecer é
vencer a força-de-inércia da herança ancestral que, como o lodo de um rio que
não se limpa há muito tempo [ou que nunca se limpou] tenta emperrar toda
inquirição mais funda, todo o maquinário da escavação e questionamento mais incisivos.
Porque questionamento “de fato” e “de mérito”, não apenas retórica de
confirmação do já-dito, do já-preservado, daquilo que a Ancestralidade toma por
“relíquia”. Isso é fácil como imaginar que tudo acaba com a morte [oh, como
seria banal e simples todo o problema se resumir no ideograma “finitude”], e é
chover no molhado.
Marcelo Novaes
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