![]() |
Sigrid Holmwood (1978- ) |
Na postagem “Fotos Rasgadas”, falei de quem tentasse apagar
sua inscrição na família e na infância, por se ver fora de ambas: não-inscrito,
ali-e-então, no tempo-contexto, pela insuficiência do olhar dos outros, sobretudo
daqueles que deveriam ser os mais próximos. Neste texto, irei fazer o reverso
disso, mostrando como o sujeito pode se reencontrar neste lugar perdido, com as
fotos que restaram: as fotos de seus ancestrais.
Em muitas religiões, o culto aos ancestrais [e eu diria
melhor: a oração pelos ancestrais] o cupa um lugar de destaque. Isso inclui
China, sudeste asiático, Índia, China, Japão, populações autóctones de vários
perfis, da Amazônia à África. Até os pentecostais de hoje, neopentecostais e
Renovação Carismática Católica concebem que se faça a Árvores Genealógicas das
famílias de seus fiéis para a assim-chamada Cura e Libertação. Shintoísmo,
Budismo Popular [não falo do Budismo Escritural, mas tal como aplicado nas
vidas das populações concretas, seja no caso do Budismo Theravada ou Mahayana
em suas diferentes versões: Jodo Shu, Jodo Shinshu, Tendai, Shingon, Soto Zen, Tibetano].
Aliás, diz-se que, no Japão, o que sobra de Budismo é mais cerimonial, e
referente a esses antepassados. Quem vai a Tóquio procurando o Budismo acaba
dormindo num hotel-bolha, e descobre que deveria ter ido a Kyoto... No Espiritismo Kardecista, Umbanda e Candomblé,
o culto aos antepassados também tem o
seu lugar. Por que tamanha preocupação com os mortos? Para além [ou aquém] da
condição que se possa atribuir a cada um deles, do Orum aos Umbrais, passando
por Círculos ou Degraus do Inferno e Purgatório, a razão é simples: porque a
existência deles nos inscrevem na história de nossas famílias e comunidade. E
eu não falo de brasões, de etimologias de sobrenomes, nem de status conferido
por sobrenomes quatrocentões, ainda que isso seja o lado mais “emblemático” ou “icônico-pueril”
da questão toda. Os “bem-nascidos”, etc, são expressões fúteis de um mundo tolo
e dos que preservam essa “sobre-inscrição” nas suas pequenas narrativas.
Mas voltemos ao que importa. O sujeito, em qualquer idade,
que não tem mais suas fotos de infância, reencontra o pai em suas fotos de
casamento. Talvez, o pai ali seja vigoroso e exiba os traços firmes ou rudes
que ele tanto temeu. Ou pode exibir uma afeição ou sensibilidade que ele
acharia “peculiar” e descontextualizada de sua memória na relação com ele. Há
aquelas velhas fotos de avós e tios, em postura tensa/congelada, características
dos estúdios de fotografia da época e dos fotógrafos lambe-lambe. Há toda uma
hierarquia [ouso dizer: quase uma iconografia] no lugar que cada um ocupa ali,
assim como ocupara nas mesas de refeição. São as Santas e Profanas Ceias de
cada Lar que podem ser, em parte, reconstituídas.
E, nesse sobrevoo iconográfico [que deve ser mergulho afetivo
e de exploração dos vínculos territoriais e modos de inserção do grupo e de
cada um] ,percebe-se, por exemplo, aqueles quatro irmãos solteiros, tios
remotos, que moraram juntos, até que sobrou um só. E se descobre desde quando
os irmãos solteiros viveram em seus guetos próprios, até morrerem isolados. Ou,
se percebe, o quanto se falavam, ou não, os primos, ou se perdiam de si aos
trinta, quarenta, ou mais cedo. Muita coisa se deslinda, quase até virar poesia
funda, nostálgica, mas nunca finda. Sempre viva. Padrões familiares são mais-que-sugeridos,
“maldições familiares” [ou padrões repetitivos e destrutivos] são flagradas[os],
e o sujeito se vê “malvisto”, malquisto ou “de lado” como seu tio-avô, trisavô
bisonho ou bizantino. Ora, a vida sempre a si se recorre, mesmo em seus amplos
fractais: tudo cabe no caleidoscópio. O que se chama de Arquétipo também inclui
esses padrões, muito para além do Édipo. E o sujeito então descobre paisagens
internas, externas, recorrentemente humanas, e percebe que sua questão [talvez
ainda informulada] é a variação de alguma questão já proposta, alhures e então.
A singularização de algo que “sempre esteve, nunca estando exatamente assim”. O
grande insight de Jung em suas amplificações quase-infinitas e fastidiosas foi,
talvez, mostrar que o humano sempre se articula nesses eixos de construção
invisíveis que o constituem, bem como à natureza. Isso é Goethe psicologizado.
Isso é também Strindberg em seu surto psicótico em 1896, narrado em sua “autobiografia
da loucura”: “Inferno”. E o que pode ser imaginado, concebido ou delirado
existe em algum lócus específico, mesmo que imaginal [e isso também é
arquetípico], como já o sabia William Blake, não com essas exatas palavras,
porque a vida segue, mesmo dando voltas. Mas são espirais, e não a tal Uroboros
dos tratados alquímicos. Felizmente para nós.
E o tal sujeito descobre então, no olhar do avô, o canto do
sorriso de sua mãe.
Marcelo Novaes
"Tudo cabe no caleidoscópio...."
ResponderExcluire mesmo dando voltas,de lambe-lambe em lambe-lambe,os reflexos de luz
(das luzes=mergulho afetivo e de exploração....descobertas preciosas como:
"no olhar do avô a descoberta do canto do sorriso de sua mãe")
iluminam para uma só direção,espiral: a vida segue!
Ufa!Felizmente.
Obrigada,Marcelo por colocar em palavras o profundo significado dos "álbuns"!
Beijo,meu amigo.
Somos também as energias emanadas da nossa história, não perder esse eixo do nosso corpo que habita nossa história e saber que esse mesmo corpo emana nossa alma(espírito, vontade e caminhos) nos contorna e funde, essa complexidade de elos faz de nós Seres em constante evolução, e isso é Ser e sentir o corpo e o vinho. - Iatamyra Rocha
ResponderExcluir