![]() |
Suzanne McClelland (1959- ) |
Imagine você, meu leitor, aquela pessoa cujo sofrimento foi
tamanho que ela quereria [ou quer] rasgar suas fotos de infância, todas as suas
fotos, porque sente que “ali, e então [e, às vezes, ainda ‘aqui e agora’] nunca
foi vista, de fato”. Presunção de tal criatura? Não. De fato, ela estava ali
sozinha, e seu meio mal sabia de si [medos, agruras, solidão]. No meu ensaio, O
Olho Que Nos Olha Nos Olhos, conto a respeito de uma crise de pânico de certa paciente,
onde a foto funcionou como “gatilho” para a crise [na verdade, o gatilho foi a
foto somada a outros fatores, que estão lá, na postagem; capítulo terceiro do
Olho: “Tempo Fechado para o Ferido Narcísico”]. A pessoa em questão não rasgou suas fotos, mas
conheço pessoas que rasgaram. E isso não significava “vontade de apagar o
passado”. Não. Trata-se de coisa mais complexa.
Se a pessoa está na foto, ela se olha e sabe que “só a si se
tinha”, porque os outros ao lado nada sabiam dela. Isso ocorre com transexuais,
por exemplo. Mas com muitos outros que sofreram montantes inquantificáveis e inqualificáveis
de abusos e negligências [muitas vezes, ambos: alternadamente e em contextos
diversos]: morais, emocionais, físicos. Repito: abusos e negligências. Ênfase para
o conectivo “e”.
Assim, para tais pessoas, rasgar a foto não seria um ato de
traição para com o ocorrido, mas de “verdade” para com as ocorrências todas,
uma vez que “lá e então [nos contextos das tais fotos de infância, emblemas dos
tais fatos infantis] estavam sozinhas e anônimas”, naquilo que mais lhes
importava: em aspectos essenciais de si mesmas. Estavam sós. O ato de rasgar
implicaria em “assumir para si” [num gesto dirigido também ao outro, portanto “dizendo
aos companheiros da foto”] que estavam sós.
Sempre falo e reitero a dor ligada à identidade, a dor de
não ser visto em aspectos nevrálgicos que nos definem, desde lá atrás: as
agressões vividas na escola, os medos religiosos impronunciáveis, os pesadelos
inomináveis, o terror do ambiente familiar “disfuncional” [sic; esta palavra é
mansa demais para o contexto], o estar num corpo que lhe parece errado ou
desconexo [se pensou nas intempéries e cisões pisque-soma tratadas por
Winnicott, siga por aí, que é um bom caminho de exploração]. No caso de haver
uma biografia com este perfil trágico [sim, a palavra é esta: faça um roteiro
de filme e tente definir o personagem de outra maneira que não “trágico”, e
verás que o falseia também: serás mais um a falseá-lo...], deve-se entender o
fulcro da problemática: a cura do grande ferido passa por dois vetores bastante
nítidos: 1) Sua história precisa caber dentro dele [em si mesmo e no seu
corpo], ele não pode sentir que “sua história é maior do que ele”; 2) os
elementos suprimidos [os impensáveis, bem como os “pré-pensamentos”, tais quais
os ideogramas de Bion] precisam ser trazidos para a tira biográfica e “caberem
nela”. Resumidamente: o sujeito tem de sentir que o que viveu não o sobrepuja
nem o sobrepõe; não o afoga, nem o torna um Náufrago. E mais: que o não dito
encontra seu lugar na sua tira biográfica, seja ele o Inefável, o Impensável, o
pré-pensado, o não-assumido, o segredo ou interdito familiar, seja o que for. Às
vezes, isso é incluso e cabe ao sujeito como “halo”, perfume, faro [no caso dos
Inefáveis], como religiosidade sincera e exorcismo dos terrores mais
arraigados; outras vezes, como um novo corpo que se apresenta mais fiel ao que
sempre se sentiu de si [no caso dos transexuais]; outras, ainda, na
possibilidade de se saber inteiro e “com o tamanho que lhe cabe”, de fato, sem
idealizações [deificações] e/ou demonizações [eis a cura de narciso!], apesar
das fotos já não existirem mais.
Marcelo Novaes
Mágoas e cicatrizes invisíveis oriundas de decepções acerca de nós mesmos e dos outros podem levar a questionarmos as escolhas passadas, fazendo questões como:“Porque é que eu não”, e “Se pelo menos.” Apesar do fato de percebermos que nada pode mudar o passado. No filmeForrest Gump, parecia ter aprendido uma lição que muitas pessoas mais inteligentes e esclarecidas não assimilaram. Certamente muitas são as coisas que nos podem acontecer e que nos obrigam a termos que superá-las. Há situações óbvias que nos acontecem na vida que podemos considerar traumas devastadores...
ResponderExcluirO profundo sentimento de perda e desilusões, promovem a dúvida acerca de se conseguimos realmente superar isso. Eu acredito que sim. Muitas pessoas têm conseguido ultrapassar as angústias do passado. No entanto, apesar de não ser possível mudar e/ou apagar os acontecimentos dolorosos vividos no passado, é possível reinterpretar a dor e a perda de forma a libertarmo-nos da mágoa paralisante. Obrigada Marcelo, pela maravilhosa leitura!
Aqui estou. E me sinto bem!
ResponderExcluir