Turquia

Turquia

terça-feira, 18 de outubro de 2016

HOMENAGEM A MARCELO NOVAES.

Escrevi este poema há cerca de um ano atrás, em homenagem ao psicólogo, poeta e pensador Marcelo Novaes, pessoa que muito estimo e admiro.
Foi inspirado por uma frase escrita por ele, no dia 16/04/2015: " E viva as amizades que me trazem sentimentos alcalinos".

Variações sobre um homem só

Homem sábio e poeta, ácido e só
com tiro na coxa e ferida no olho
armado com pênis, intermitente e sápido
procura colo primal e plácido
vagina ácida e quente
de mulher básica e alcalina.

Homem místico e ávido, impaciente e cansado
procura coração cálido e sólido
para mergulho gota a gota
do sêmen alcalóide e grávido
no sulferino e pulsante fundo
do ferido colo uterino.

Homem cristão e cientista, do louco e do são
com faca incrustada no colchão da alma
e profundo rigor na palavra cortante
procura colo básico e leitoso
de mulher translúcida e silente
para o último abraço.

Homem, bom e mau, indignado e verdadeiro
com dedo quebrado e coração ardente
procura seio farto e róseo
ferida aberta e sem sutura
boca insana, tímida, e língua louca
para o único beijo dilatado.

Lígia Sacras

sábado, 3 de setembro de 2016

Existencial



Tanta beleza
E há quem veja na poesia
Apenas topo entre brumas sem coesa
Das espumas
A proeza do verso é escala
Que ordem nenhuma mede
Assim a céu aberto
Por isso a sede que cede a montanha
E adentro quem vai ganha seu copo meio vazio
Assanha segue o poema a rio a fio a brio
Onde a rima convier o desafio
Arde nisso o sublime do encontro
O encaixe a réstia da profundidade
O ponto de fusão
Autenticidade
Explosão.
- Iatamyra Rocha

terça-feira, 1 de março de 2016

Um Vislumbre de Jesus [A Glimpse of Jesus]



Ara Sassoonian






Depois de centenas de compassos na condução de uma orquestra, o maestro impetra um gesto que inaugura o silêncio. Por um tempo mínimo. Um sino é tocado em seguida, sem qualquer adorno. Uma semínima, dando sequência à música. Quero que o leitor esteja atento a esta nota, como estaria ao soar de uma tina de bronze ou sino num ritual religioso. Peço ao leitor que considere, ainda, o “tlin” de certos relógios antigos [os de pêndulo], nas horas redondas. Pensemos, ainda, na campainha que toca [um tlin também, embora outro], anunciando a chegada de alguém vindo de outra cidade, alguém muito querido. Talvez alguém com quem queiramos confidenciar muitas coisas havidas desde longo tempo de ausência, para ambos. Talvez alguém com quem queiramos nos reconciliar. 

Podemos nos perguntar, no dia a dia, se teríamos tais “toques de sino” presentes, se estaríamos presentes quando da sua ocorrência. Muitos de nós temos um plano de fundo de ruído que funciona como fator estressante subjacente ou como “ruído branco”, quando não temos zumbidos no ouvido, sons como o chiado de uma panela de pressão, cigarras, cachoeiras que só de quando em vez silenciam. O silêncio aqui seria o tal “toque de sino”, singular e presente pela suspensão do ruído. Alívio e/ou júbilo podem se sobrepor a essa vivência tão breve, que logo largamos de mão. No caso do ritual, talvez haja um momento de autolembrança. No caso da visita, uma alegre expectativa. No caso da reconciliação, o sentimento do “derretimento do coração”: a ternura, a queda de couraças e armadura. Tudo isso. 

Vou chamar a esse “tlin” de “glimpse”, até por eufonia e homofonia: soa como um toque de sino. O tal vislumbre ou insight na língua inglesa. Vislumbre é bom: soa como um súbito aparecer de uma luz ou som de algum lugar, dentro-fora. No caso da música, quão mais desconcertante e imprevisível ela seja em novidade, mais nos terá “alavancado” até o patamar alto de sua pausa coroada pela semínima. Acompanhamos a jornada toda com “movimentos internos”, cognitivos, proprioceptivos. No caso de distúrbios do ouvido interno ou do estresse, fica-nos óbvia nossa coparticipação no fenômeno. No caso da visita, estamos engajados no encontro. Tudo é dentro-fora, nessas circunstâncias de “toque de sino” ou da “pausa como toque de sino”: glimpses. Vislumbres, enfim. 

Se alguém perscruta Jesus nas escrituras, se esse alguém se permite auscultar sua própria leitura, esse momento pode surgir de quando em vez. Um reconhecimento da “voz” e de nosso movimento interno a essa “voz”. Há teólogos que procuraram a máxima aproximação possível com a “dicção” daquele que ali e então falava: a “Ipsissima Vox” de Jesus. Para quem procura essa reconstituição do idioleto de Jesus, a forma peculiar como ele se apossou da língua e gerou significado, um autor como Joachim Jeremias poderia ajudar, ao lado dos Evangelhos. De qualquer maneira, o sujeito em questão se depararia com a possibilidade [ou não] dos vislumbres dos toques de sino no tocante aos ditos de Jesus e essa fala “se tornaria atual para ele”, no sentido mesmo de tudo que colocamos acima: se atualizaria enquanto “momento” cognitivo-emocional, como momentum fenomenológico “rico”, rubricado, como a “fermata” na partitura musical: a pausa que emoldura a nota e/ou o silêncio consequente e subsequente. 

Quem lê assim os Evangelhos, não parte de teologias dogmáticas ou “inerrâncias bíblicas”, porque tais militâncias beligerantes são o que de pior as Igrejas construíram, o que também é distinto de dizer que “todo subjetivismo cabe naquilo que já está escrito”, falácia contumaz e repetida dos apologetas fáceis e temerosos de qualquer “conspurcação da Palavra”. Deixemos os temores para os teólogos confessionais comprometidos com seus confessionalismos. Quem procura pela fala de Jesus, ao contrário dos que compõem Teologias Sistemáticas, não parte de Deus como pressuposto, uma vez que Jesus se apresenta como “o que revela Deus”, portanto não se tem de ter um “a priori à própria fala do verbo”. Engraçado: quem ousasse supor de Deus sem o verbo dele não precisaria. Assim, pode-se focar nos textos onde Jesus fala deixando que ele mesmo remeta ao pai, em seus próprios termos que foram, em termos pessoais [não nacionais] e humanos [para todos os povos] inaugurais em seu todo: pelo continuum da fala, e não por uma ou outra associação episódica a textos da Antiga Escritura: a Lei e os Profetas. Caso se queira ir à Lei e/ou aos Profetas, que se deixe o próprio Jesus apontar as ocasiões para fazê-lo! Se se quer apor ou antepor à sua fala os desígnios do Pai para ele e nós, que se saiba que o Filho não é peça “inconsciente” nem “involuntária” no projeto teologicamente entendido como o Projeto de Salvação [a soteriologia] , e que, além de autoconsciente, é também “autodoado” a nós, por sua “livre escolha no relacionamento com Deus que faculta a nós por seu intermédio”. As igrejas criam obstáculos sem fim à primeira perscrutação dos que partem da absoluta incredulidade em relação a Jesus, mas com inclinação à sondagem do mesmo. Sobretudo as Igrejas que, nominalmente, aderem ao lema da “sola scriptura”, porque querem delimitar os eixos de busca de cada leitor. Exemplo: os Adventistas estão preocupadíssimos com o Apocalipse de João e suas possíveis concordâncias com Daniel, e fazem desse par [Apocalipse-Daniel, Daniel-Apocalipse] a centralidade de sua ansiosíssima espera pela segunda vinda de Cristo, junto com a preocupação de que o Papa institua um culto a si [ou ao Papado] que não seja a Deus ou a Cristo, com um afã monumental de alertar a qualquer um que esteja de sobreaviso junto a tal armadilha. Isso ao lado de sua intransigente defesa da observância do sábado [“bíblica”, dirão!, repetindo o mantra e impingindo a velha e mais-que-batida máxima da “hermenêutica circular” de que “só a Bíblia explica a própria Bíblia”, da forma mais literalista e fundamentalista que se possa cogitar], em cuja falta os “não-observantes estarão condenados”, afinal “quem não cumpre um til da Lei [ou “um Mandamento”], descumpre toda a Lei” [não é mesmo?], numa atitude que é pior do que legalista: é ultrafarisaica. Vejo as mesmíssimas pedras jogadas a Estêvão, quando os homens do sinédrio não toleraram a parte final do seu discurso [Atos dos Apóstolos, 7, 48-53]. 

O mesmo posso dizer para cada uma das confissões ditas “reformadas”, com seus dogmas prediletos, afugentando o leitor cético de qualquer aproximação livre a Jesus, sem pressupostos a não ser o de suas palavras mesmas. Pois bem, a partir disso, que o leitor consulte, segundo sua consciência e a inspiração do Espírito Santo ou Graça [que sempre será chamada de “astúcia do Inimigo”, a cada vez que tal caminho contrariar “o modelo de pavimentação preferido” de cada confissão da Cristandade Institucional, ou a letra fria da Palavra] estudos críticos-textuais da Bíblia, arqueológicos, paleontológicos, estudos de antropologia religiosa [as antropologias católica e protestante são antípodas ou complementares, segundo a bagagem de cada um], filósofos da religião, ou os autores que mais lhes digam à alma em seu “lugar e ponto na própria caminhada”, sem as bitolas e pressupostos tão vociferantemente impingidos e alardeados por cada uma dessas confissões militantes. Porque, partindo das palavras de Jesus e, somente a partir delas, podem-se alcançar as referências que pareçam pertinentes a cada buscador numa ampla gama de teólogos ou filósofos da religião, de Karl Barth a Emil Brunner, de Paul Tilich a Pierre Teilhard de Chardin, de Wolfhart Pannenberg a Oscar Cullmann, de Kierkegaard a Henry Michel, quais sejam as que surjam no horizonte-de-indagação de cada um. Por uma razão banal: ninguém é dono da pergunta alheia, e as perguntas são as mais variadas para as questões colocadas nos Evangelhos. Mas isso reforça a força de Jesus, longe de enfraquecê-lo, justamente porque as palavras de Cristo são demasiado singulares para poderem ter sido cogitadas e falseadas substancialmente, uma vez que os homens de então [e de agora] não possuíam [e não possuem, ainda que forcejem por fazê-lo, em suas tantas teologias] as categorias ontológicas e epistemológicas para criá-las. Jesus não poderia ser inventado simplesmente “porque está e permanece acima das categorias de pensar-e-ser-o-humano disponíveis para fazê-lo”, lá atrás como agora. Elas estavam indisponíveis e permaneceriam, sem sua própria fala. Ele tenta explicar a si e à sua vida, enquanto ilustra-a, vivendo-a. Isso é sua singularíssima natureza humano-divina. E isso é mais do que a soma das teologias e confissões, malgrado os protestos [já os entreouço!] em contrário. 







Marcelo Novaes