Turquia

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terça-feira, 14 de julho de 2015

Laboratorium-Oratorium: o Self como elemento emergente no Temenos Analítico







O sujeito procura o consultório clínico, no caso da psicoterapia, como quem procura um laboratório. O espaço é outro do espaço cotidiano. Vamos tentar fazer jus à imagem junguiana e sair dos hermetismos. Há conflitos e quantidades de tensão que o sujeito não consegue suportar em si mesmo: não cabem nele. No meu O Olho Que Nos Olha Nos Olhos, mostrei uma das gêneses mais doídas disso: o sujeito cresceu sem testemunhas para aspectos nevrálgicos de si mesmo, inclusive dores, ataques ambientais, invasões de todos os tipos, falhas graves em um ou mais dos ambientes primários: família nuclear, família extensa, escola, igreja, orfanato, hospital, rua de casa, vizinhança, etc. Não raro, o sujeito ferido em um dos ambientes o será, comumente, em mais de um:  é só o amigo leitor atentar  para a criança que chega à escola com medo e, constatará, mais ou menos consternado, o quanto ela tende a ser “vítima preferencial” da bondade inata das outras crianças.  Uma das maneiras de se nomear as dores da ferida narcísica é esta: a história parece não caber no sujeito, sua própria história não cabe nele – ela transborda da tira biográfica. Muitos nessa condição são os tais “borderlines” de hoje. Voltemos ao espaço de encontro clínico: ali, no contexto dialogal-transferencial há uma maior possibilidade de contenção e circulação dos conteúdos. Fixatio e Circulatio/Destilatio, nos termos alquímicos junguianos. Vamos reapresentar o insight junguiano, despojando-o dos hermetismos e de seu estilo hiper-reverberativo de “amplificações em cascatas”.


Em termos alquímicos, o que não cabe no íntimo do indivíduo não lhe cabe na alma, tal qual nos vasos quebrados da Cabala, incapazes de suportar o derramamento de Deus [nem do Destino...] e, portanto, pedindo por reparação. Mas, aqui, falamos de um vaso íntimo, o tal “vaso alquímico” de Jung. Não cabe no psicossoma do sujeito: ele não suporta tal voltagem. A redenção [ou reparação] de um sujeito também é um trabalho cósmico, por isso Alquimia e Cabala deram-se as mãos tantas vezes, sobretudo a partir do século XII. Tal energia [a libido junguiana, mais extensa do que a libido freudiana, tal qual o élan vital bergsoniano], “em não cabendo no sujeito, procura espaço nesse encontro analítico”. Seguindo sua lógica de maneira coerente, Jung chamou a esse espaço “temenos”, termo grego, cujo sentido é o de “um espaço sagrado e protegido”. O leitor guarde esse conceito. O termo poderia ser laboratorium [como no caso dos alquimistas] ou oratorium [no caso dos religiosos], mas os dois termos confluem no temenos, assim como confluíam no laboratório alquímico, uma vez que os alquimistas eram extremamente religiosos. Repito: os alquimistas eram extremamente religiosos. Laboratorium e oratorium eram como que uma só coisa para eles. No temenos, ou espaço protegido e sagrado analítico, há uma maior oportunidade de circulação do que, até então, não encontrara lugar, uma vez que “nos ambientes todos não houve lugar para tal”. Assim, o temenos não é o ambiente, nem parte do ambiente, como o seria, por exemplo, um encontro com um amigo num bar ou livraria ou cinema. Ou para comer um sushi. Nada disso. Isso tudo é ambiente.

O temenos é constituído pelo par analítico e por um “entre”. Ao longo do tempo, percebeu-se que esse “entre” é similar a um “ente”, age como um “terceiro analítico”, que cria um dialeto [ou um idioleto, para usarmos um termo de Umberto Eco] para ambos no par, e um repertório imagístico que permeia ambos. Esse “entre” é o “terceiro” que “faltou ao ambiente”. Ninguém soube/ pôde ou conseguiu criar um código narrativo para as ocorrências de humilhação e invasão massivas ocorridas ao sujeito, ou às suas vergonhas e conflitos pulsionais, nos termos freudianos. As primeiras feridas não são as mesmas que as segundas e são mais sérias que as segundas, como já amplamente explanado em meu ensaio supracitado. Prossigamos. Esse “terceiro sujeito” que surge no “entre” o par analítico já foi tratado por Thomas Ogden, James Grotstein e vários outros, na esteira dos dois. Jung falava em “Tertium non datur”, “o terceiro termo não dado à priori”, como um símbolo [ou conjunto de símbolos] que “dessem conta” da dor e da resolução de conflitos do sujeito. Beleza. Aqui vou chamar a este conjunto de símbolos de dialeto ou idioleto. Só nesse dialeto e idioleto pode-se fazer jus à riqueza de detalhes e matizes das dores sofridas, mesmo em sua factualidade. Sim: muitas foram factuais [tiveram uma base ambiental indiscutível e negá-lo seria não aprender nada com Ferenczi], porém atingiram um sujeito que as internalizou com coloração “mítica”, por inúmeras razões que exemplifico em meu ensaio: 1) porque cedo demais; 2) porque grandes demais [as dores]; 3) porque massivas demais [por todos os lados, circulares ou sentidas como “oniabrangentes”]. Isso é um resumo suficiente para o perfil das dores apresentadas ali e suficientes para este texto. O terceiro analítico de Jung, no rastro da alquimia, é algo internalizado via análise [a voz do analista internalizada, em cujo diálogo o sujeito acha o idioma para dizer-se]. O quarto elemento é o ambiente, tudo o que jaz lá fora. Bom, o ambiente que empurrou o sujeito [desde a infância, um ambiente com colorações regressivas] não é o mesmo quando o sujeito incorpora um novo idioma para interagir com ele, se apresentar a ele e reconfigurá-lo. Mais do que isso: o centro no qual o sujeito se percebe é a confluência desses vetores, um dos quais não dado á priori. A esta percepção de “eu” que inclui uma “língua nova” e um diálogo “sui generis” [jamais experimentado antes] e internalizado, a este eu que agora tem um centro que “pode transitar por todos esses ambientes, não se confundindo com nenhum deles – o Um, o Dois, o Três e o Quatro], podemos chamar de “Self”. Self é o “senso de eu” no centro desse quatérnio, e Jung adorava os quatérnios. Essa progressão numérica pode soar “pitagorismo” e também é, de certa maneira, mas “pitagorismo aplicado”. Às novas escolhas disponíveis ao Self, poderíamos chamar de “sexto elemento dado, só a partir dos cinco anteriores”, e sabemos o quanto no Pitagorismo, Tarô e quejandos “seis é o número das escolhas”. Dessas escolhas que se abrem para este “eu reconfigurado” como “novo centro” [o Self, não mais “aquele mesmo ego que pisou no temenos, lá atrás”] há um leque de decisões “só-agora plausíveis”, um leque de emoções novas decorrentes disso [do só-agora] e uma série de decorrências deste "novo então". 

Mas há algo muito importante a ser dito aqui: o Self é tão intímo ao sujeito que é ele mesmo, no sentido de "alguém de cuja companhia ele mesmo sentia falta, antes de encontrá-lo/encontrar-se nele". Esse é o elemento ubíquo e/ou numinoso do Self. Se as decorrências surgem "inaugurais para o Self emergente", ele se apresenta como paradoxalmente antigo, porque soa como uma instância anterior ao ego: aquele que estava "ali e atrás", esperando para: 1) resgatar o ego; 2) ser resgatado no temenos por um terceiro Providencial. No meu ensaio já citado eu uso muito o termo "Self encapsulado". Em termos mais hieráticos e grandiloquentes, como gostavam de usar os alquimistas, esta á a famosa insígnia à guisa de aconselhamento: "Visita Interiorem Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem -Visita o Interior da Terra, Retificando-te [e a Ela!] e encontrarás a Pedra Oculta". O tão propalado termo VITRIOL.

Pois bem, este Self é "maior do que o ego", mas não necessariamente possuidor da valência sombria do Deus Terrível: ele é e faz a interface com o Terceiro que não se dá senão no "entre". E esse ainda não é Deus. E o Deus entrevisto não será só temível, mas também aliado, porque o Self só emergiu graças a esse Terceiro!  A tal Imago Dei [imagem de Deus se manterá como "só-temível" [uma visão do Sagrado como "Sagrado Terrível"]  se sua "face sombria" imperar sobre todas as outras possibilidades interativas. Muitas biografias trágicas acentuam essa percepção unipolar do Deus além-Self, como se o olhar para Deus existisse sem que Gevurah [Julgamento, Rigor ] e Hessed [Misericórdia] se equilibrassem. O ver-se sob o prisma de um só polo é "inflação negativa", o que é muito comum aos que "morrem de medo do Inconsciente". A reverência de muitos junguianos ao numinoso beira tal confusão: a persecutoriedade pelo Self - tudo é o Self. Caçam sinais de Deus a cada migalha de evento, muito antes de serem místicos. Isso é uma patologia a ser classificada pormenorizadamente, e não um substitutivo da experiência mística ou Eclesial. A não ser que se queira fazer do Clube Junguiano uma outra Igreja, tendo Filemon por Mediador [uma epifania semelhante ao Espírito Santo!]. Sobre o Numinoso Sombrio, meu ensaio já citado o explicita suficientemente.

Considero a leitura de Jung de que a Alquimia visava compensar o que seria "excessivamente alto" no Cristianismo, tendo em Jesus "um ser Excelso demais", uma leitura equivocada do fato e, portanto, jamais uma "resposta ao fato", porque, de fato, os bons alquimistas olhavam para Jesus como Fato Excelso, Alvo-Remoto, mesmo que reververando no íntimo ["Visita o Íntimo da Terra"], sem dilui-lo no processo, fazendo-o parecer mais acessível como "Cristo Interno". Se diluirmos as questões, como imagina Jung nessa assertiva, diluiremos, igualmente,  a "suposta solução à questão". Cristo continua Excelso para os Alquimistas. A distância se mantém. Jesus é próximo mas é Excelso e sua Proximidade é Amor "que nos antecede" [!]: amor que "escolhe se aproximar". A distãncia só não se mantém para Magos Megros. O leitor pode pesquisar à exaustão. Só para os que assinam embaixo o Thelema de Aleiter Crowleye outras posturas "Luciferinas" é que a suposta distãncia diminui. Portanto, a Pedra, como Cristo, sempre foi um conceito-limite e o Self, na sua Face anterior ao "eu sendo" sempre foi, no máximo,o ponto de intercessão possível entre o "senso de eu" e esse Numinosum, além de um senso de co-participação nos destinos do mundo, porém não se confundindo com o próprio Numinosum. Essa posição é menos ambivalente do que a leitura de Jung sugere, sobretudo se incluirmos o Livro Vermelho nessa leitura. Ali, Jung passa por situações onde é até chamado de Cristo, pela cega Salomé.

Tal identificação [Self e Imago Dei ou Cristo], identificação suposta e além dos objetivos clínicos, pode se dar, estendendo o conceito a seu limite, e só nesses casos, em sujeitos excepcionais [muito além de Jung]. Isso é plausível em quem, de fato, se tornou "excelso" e não somente "fiel a si mesmo". A fidelidade a si mesmo é só o ponto de partida da viagem. Assim, extraordinários místicos, santos e sábios consumados [yogues e pessoas do mesmo calibre] podem vivenciar este ponto de interceção ideal, em suas possibilidades-limite. Ainda assim, nã se consideram "Cristos". Do contrário, estaríamos banalizando o objetivo alquímico [o Excelso, o Corpus Christi], para fazê-lo caber em nossas possibilidades, o que não faz justiça alguma a alquimistas[-teósofos] como Jacob Boëhme, Paracelso, Claude de Saint Martin e tantos outros. Nenhum "adepto" se declarou, jamais, "igual a Cristo", mas sempre menor do que Ele. Se houvesse tal confusão, o sujeito se "deificaria" imaginalmente, sem sua contrapartida "real" [moral, espiritual, ética, etc]. Seria como comprar no cartão de crédito "por conta do que se supõe que ainda esteja por-vir". Para apresentar outra metáfora de fácil entendimento seria como "gastar os dividendos do pré-sal antes de extrair as reservas de petróleo ali estimadas". Erro de implicações graves. É bom manter uma distância maior dessa suposição apressada. A história de Jung não é "a história de um inconsciente que se realizou" [sic]: é a de um inconsciente se realizando, com erros e acertos. No gerúndio. Muito do "culto a Jung" decorre dessa confusão. Eu, você, Jung, não superamos essa condição comum. Estamos longe de qualquer deificação. Mentimos, se assim o imaginamos. E ser "íntegro", no sentido alquímico ou religioso, é algo além de ser "franco" ou "sincero". Os psicopatas também o são. Nenhuma presunção de fato consumado, realização, autorrealização e termos igualmente messiânicos, muito próximos de alguma "suposta redenção obtida" pode ou deve ser assumida [ou indevidamente usada] para descrever a nossa [minha, tua de Jung] situação prosaica e demasiado humana.

"Agora vejo em parte, mas esntão veremos face a face", já dizia Renato Russo, parafraseando São Paulo.

Dessa forma, o Self é revisto nessa minha leitura como sendo "menos do que Jung o declara, ainda que maior do que o ego".










Marcelo Novaes

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