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Rubem Alves (1933-2014) |
Em março de 2010, passei uma tarde na casa de Rubem Alves, em Campinas. Coloco aqui, no Turquia, um pequeníssimo depoimento sobre nosso encontro. Apesar de ter sido um encontro só, foi denso, e eu o compararia a dois encontros que tive com Eleonora Marino Duarte, a Lola, que é
minha amiga até hoje, encontros havidos em 2009 e que, tenho certeza, nenhum de
nós se esquece. Eleonora faz parte deste blog.
Uma professora de literatura da Unicamp fez a ponte
entre mim, outro poeta e Rubem Alves. Ao chegar na casa dele, ele estava
dormindo, fazendo a "sesta". Não tenho a menor dúvida de que ele não
nos esperava e, ao ver o grau de confusão de tantos professores universitários,
não duvido que o "desencontro" tenha se dado por má comunicação da
professora. Foi interessante chegar no dia errado, inclusive para flagrar a
espontaneidade assim gerada. E para vivê-la.
Rubem Alves é [e faço questão de manter o verbo no
presente] um cara sem afetações. Não vi isso em professores acadêmicos, e não
coloco aqui nenhuma exceção, depois de conhecer bastante muitos professores
acadêmicos. Ao dar-lhe meu livro de juventude, Cidade de Atys, escrito antes dos meus 26 anos, ele disse: "bastante
herético". Vimos que somos, ambos, anticlericais, mas profundamente
religiosos. Rubem Alves era teólogo, além de psicanalista, e não lhe agradava o
clericalismo, bem como a agenda política atrelada às religiões. Não o imaginem
"ateu", longe disso. Eu lhe falei de cristãos que me interessavam,
dos blogs que tinha na época [muitos desfeitos de lá pra cá], e ele viu que
minha espiritualidade era baseada em cristãos neoplatônicos [Duns Scotus,
Escoto Erígena] e nos místicos apofáticos [Nicolau de Cusa e Meister Eckart],
além do Budismo. Repito: Rubem Alves era profundamente religioso, ainda que
anticlerical. Podia, sim, elogiar um padre destacado do clero [Padre Léo, por
exemplo], mas não endossava a institucionalização religiosa. Assim como poderia
desmontar os males do fundamentalismo, mostrando o absurdo de aplicar as regras
do Levítico para os dias atuais. Fez isso em artigo publicado na Folha de São
Paulo. Ainda no tocante à religião, brincou achar o "caqui" a fruta
do Éden, e mostrou um quadro que fez, com folhas secas do caqui. Comentou a
sobrevivência de sementes de caqui à radiação de Hiroshima, o que para ele era
simbólico-emblemático de sua associação.
Era também educador, como todos sabem, com ênfase no
"aprender a aprender". Eu diria, um Krishnamurti tupiniquim, sabendo
ouvir e fazer perguntas que despertassem mais o conhecimento latente.
Maiêutico, portanto.
Tomamos café numa padaria, acompanhado da versão
local de um biscoito de polvilho mais consistente, de cujo nome, infelizmente,
não consigo me lembrar. Falava-me de encontros que promovia em sua casa, onde
os já idosos encerravam as leituras e conversas com "pão e sopa".
Nada mais apropriado. Sei que eles liam bastante Guimarães Rosa, a inspiração
para o tipo de tertúlia que ele recepcionava.
De lá para cá, muita água rolou. Conheci saraus e
deles me despedi, porque me agradam conversas a dois, a três, a cinco, ou
aquele ambiente caseiro que os poetas que conheci não sabem produzir em saraus.
Fui a dezenas deles para decidir que não quero "mais do mesmo".
Enxuguei meus blogs. Rubem Alves decidiu encerrar sua coluna na Folha quando
descobriu que "já tinha dito o bastante". Era um grande
"escutador" e "provocador de relatos", além de contador de
histórias. No passado, achara que dizia as coisas para se encaminhar para o
silêncio, mas, de fato, assumia que a perspectiva de um grande silêncio lhe
parecia "barulhenta", "assustadora" demais, como na
expressão de Nelson Rodrigues: "Fez-se um silêncio ensurdecedor". Em
Rubem Alves, paradoxos não eram estilo, nem boa dramaturgia: eram uma
constatação da vida. Um modo de ser fiel aos fatos e a si mesmo. Daí suas
"deserções" do mundo institucionalizado: ex-teólogo, ex-psicanalista,
valorizador das passagens e dos "fracassos" [fracassos corretos,
diria eu, como o de Van Gogh], contra nossa idolatria cultural dos
"sucessos". Dizia ele, textualmente, e assim me disse: "Nunca
conheci nenhum bem-sucedido que fosse interessante". Havia sido convidado
a escrever para uma editora um livro para aspirantes ao sucesso, e recusado o
convite com este mesmo argumento.
Fique em Paz, Rubem Alves, porque a Paz é para os
bons, e vc é bom. Como na tabela periódica, cada qual ruma para o "peso
atômico" em que seus sentimentos de amizade, justiça, valor e amor pendem.
Se estiveres entre seus iguais, este lugar merece o nome de Céu. Ou uma das
boas casas do Pai.
Abraços fortes e conforto à família.
Marcelo Novaes
Marcelo, tô aqui maravilhado e comovido com seu depoimento vivo sobre o Rubem Alves. Alguns textos gosto de imprimir para ler no papel e guardo em pastas no computador, esse seu, ficara nas mesma pasta deste homem que viverá além de seu tempo por meio de sua obra inspiradora, não apenas para a nossa, mas também para futuros rebentos de uma humanidade hoje carente de mais poÉtica como a praticada pelo Rubem. Abraço das montanhas.
ResponderExcluirMarcelo,
ResponderExcluiro que mais me tocou foi teres a apreciação exacta de quem é o Rubem, assim, na hora e no dia e ser ele assim mesmo, como foi lido e percebido por você.
Você, aliás, é um grande leitor de almas :)
Um texto tão bem escrito e tão sentido faz-nos sentir.
Obrigada por teres me incluído no leque de impressões-para-sempre, saiba que a sua imagem e presença são também para mim uma constante, desde então.
Um grande beijo, irmão.