Tão certo quanto o leitor ao me ver à janela, saberá que eu
não me exponho à janela, mas ao sol na janela, se prestar atenção a alguns
detalhes [meus olhos fechados, para ficar num único exemplo], o texto de Michel
Henry é seu próprio cumprimento: ele se revela. Seu método? Uma fenomenologia
[uma valorização dos fenômenos] não preocupada com o “lá fora”, mas com o “cá
dentro”: uma fenomenologia da subjetividade que é, por conseguinte, uma
ontologia, como consequência necessária e incontornável de seu método. Sua
filosofia do Cristianismo é uma fenomenologia da interioridade ou da
subjetividade em seu sentido mais agudo. Com palavras minhas, que não repetem
nem replicam as de Michel Henry, quero compartilhar minha leitura deste grande
ensaio “Eu sou a Verdade: por uma Filosofia do Cristianismo”.
O modo de apresentação de Cristo por parte de Michel Henry,
através de verdades fenomenológicas apodícticas [formalmente necessárias] é um
modo poderoso que visa desvelar uma Verdade ali, ao cabo de uma sucessão de
verdades, mas não como um teorema: mais do que “ao modo dos teoremas”, mas como
um convite à interioridade. A primeira coisa que me cabe apontar ao leitor é
que “aquele lugar para onde essa sucessão de verdades pode apontar só pode ser
habitado por Jesus”, em todos os seus aspectos concretos, fenomenológicos: sua
história, seu agir, suas palavras. Pois bem: pode ser habitado por Jesus e por nenhum
outro. Ora, naturalmente que o lugar ocupado pelo leitor e por mim também assim
o são, “únicos e intransferíveis”, não é verdade? A questão é um pouco mais
profunda, amigo ou amiga. Vamos, então, àquele lugar que justifica a escolha do
título do próprio livro: “Eu sou a Verdade – por uma Filosofia do Cristianismo”.
Não há “nada de especial” no lugar a que se pretende chegar:
ele é o ponto exato da emergência do humano, antes e aquém/além de biologismos
e outros cientificismos das ciências “duras” [exatas] ou humanas. Ainda que
este lugar se mostre como o ponto de emergência do humano, há uma guinada
quando o humano toma consciência desse lugar originário: eis o que podemos
chamar Graça, conversão, em contraponto à dispersão, diversionismos, bem como a
todo o maquinário que pretenda simular a vida, falseando-a e esvaziando-a de
si. Os termos aqui empregados não são os do Michel: apenas reapresento o que
ali visitei, sem, no entanto, repeti-lo. Dar-se conta desse lugar é, também,
ser encontrado pelo Sopro da Vida, e este é o lugar do verbo que Jesus sempre
ocupa, com plena ciência de o estar ocupando, com plena autoconsciência de
ocupá-lo, e não podendo descolar-se dele, por ali ser e habitar, habitar e ser,
sendo-lhe, portanto, consubstancial. Aqui nós temos um critério que inclui
muita coisa como corolário, sendo a não-hipocrisia [e a condenação da mesma]
uma das manifestações possíveis de serem “detectadas”. Mas isso é menos
importante do que “dar uma espiada no cá dentro/lá dentro” do que É Jesus. Ele
é Sopro agindo e sendo o tempo todo, jamais se rendendo a qualquer simulacro,
casca vazia, mera aparência ou “jejum como espetáculo”: a oração não é
espetáculo, o jejum não o é. Essa possibilidade vivente de lá-estar, na “primeira
dobra do ser originário”, sendo esta dobra a manifestação mesma da Vida, Deus e
“Verdade-da-própria Vida quando vista-vivida- e ‘sida’-na-origem e desde a
origem” é que faz de Jesus o Cristo: em sua condição, autoconsciência [ciência
plena de assim sê-lo e, portanto, não podendo falsear-se], no gênero de suas
declarações, no estilo de suas assertivas. Faz também dele plenamente humano,
porque vivo e manifesto-agente na dobra do humano, neste mesmo ponto de
inflexão que nos origina a cada um de nós, antes e além-aquém de qualquer
biologismo ou cientifismo a tabelar essas manifestações da Vida, sem, no
entanto, “poder tocá-la em si mesma”. Jesus a tocava “pelo lado de dentro”.
O que podemos dizer deste lugar? Seria o lugar de Filho da
Vida-Deus, ciente de sê-lo, plenamente ciente e agente neste lugar específico e
“comum”: agente e vivente porque essa plena ciência só pode se dar na
autoexpressão e autorrevelação. Seu próprio ser-agir, apresentado aos humanos
todos e, sobremaneira, aos que vislumbraram este lugar no convívio com ele,
torna os humanos assim afetados como “co-conscientes de suas próprias condições
de Filhos da Vida: filhos pelo Filho, através do Filho e com o Filho. Assim,
Jesus não é só o pastor das ovelhas, o que seria o equivalente a um “mestre
ético”, mas a porta mesma do redil onde ficam as ovelhas, conforme sua própria
narrativa em João. O “passar pela porta” é um “tomar consciência de si neste
lugar apontado pelo Filho” que equivale a um nascer de novo, um “nascer para o
Alto” que é, ao mesmo tempo, um nascer na Fonte, da Fonte, na Origem e pela
Origem, nascer este mediado pelo Filho, plenamente ciente deste lugar e
condição.
Essa passagem pela porta, quando se dá, ilumina a Lei pelo
lado de dentro, permitindo que se flagre os “jejuns de espetáculo”, as orações
de espetáculo e se opte pela “prescrição do espetáculo”, quando se dá, então,
certa “caducidade da Lei, em seus aspectos mais exteriores”, uma vez que, pelo
amor e gratidão gerados sem tal lugar se desdobra a própria ética cristã, pelo
menos em seu momento inaugural, revelada neste lugar de amor, perdão,
misericórdia, acolhimento e copertença. Dito de outra maneira, cumpre-se a
ética sem o artificialismo por tomá-la como um conjunto arbitrário de regras como que “dadas
de fora”, uma vez que se enxerga uma ética a partir de dentro e mais: o tal
lugar, por si mesmo, invalida e inviabiliza o “jejum como espetáculo” ou a
validação da hipocrisia. A virtude da “travessia da porta do redil”, ao
contrário vai se engendrando de dentro, a partir de dentro, pelo contato
fulgurante com o ser-agir de Cristo, atemporal em seu fulgor e como
Palavra Viva. E essa atemporalidade se daria, justamente, pelo lugar de onde
ele fala e no qual ele Vive e É. À experiência de roçar este lugar poderíamos
chamar “batismo no espírito”, descobrindo a própria condição de Filho no Filho
e pelo Filho, com a consequente guinada nos valores e percepção. Uma “injeção
de vida”, ainda que “estranha ao mundo” do lá fora, das mimeses, das
falsificações, falseamento e falcatruas. Não duvido que Michel tenha vivido
aquilo que narra.
Michel Henry desdobra seu primeiro livro sobre Cristo numa
trilogia, onde aplica seu mesmo método de exploração fenomenológica, numa “fenomenologia
da fenomenologia” ou “fenomenologia da vida”, como seu pensamento passou a ser
conhecido. “Encarnação – por uma Filosofia da Carne” e Palavras de Cristo
complementam [ou completam] este belo ensaio inaugural sobre o Cristianismo, “Eu
sou a verdade”, o mais belo texto filosófico-laico que eu já li sobre o tema.
Ainda mais instigante para aqueles que, perdidos nos labirintos de uma
hiperintelectualidade urobórico-europeia, encontram dificuldades para
encontrarem em si mesmos [por meio do Filho!] o “fio da vida”, ou “a água da
vida”.
Marcelo Novaes